A psicanálise diante das anomalias científicas: o que a clínica nos traz?

Por Daniel Hamer Roizman. Psicólogo e mestre em psicologia social pela PUC-SP. Autor de “A psicanálise das experiências anômalas: desdobramentos do estranho”, editora Zagodoni, 2024, São Paulo. Membro do PROEXP (Programa de estudos em experiências não-ordinárias e estados alterados de consciência IPQ-HCFMUSP). Membro da IARPP (International Association for relational psychoanalysis and psychoterapy). Fundador e mantenedor do canal do youtube Gaiata psi: psicologia e a psicanálise.

O mistério da existência e seu fim com a morte despertam uma angústia existencial que, por vezes, nos paralisa. De acordo com Freud e vários de seus sucessores, o interesse pelo paranormal faz parte do universo infantil devido à mente anímica que experiencia o universo como consciente e dotado de forças com propósito e personalidade. Nesse sentido, os fantasmas e as crenças em poderes mágicos seriam resíduos da neurose infantil jamais completamente elaborados no adulto. Deus e as religiões também entrariam como elementos necessários para que as pessoas lidassem com o desamparo frente à aleatoriedade da vida (WONDRACEK, 2003).

Nessa via, a psicanálise entraria como uma prática racional de explicação visando uma possível libertação terapêutica das amarras da neurose que nos levariam ao medo da vida e à crença no sobrenatural e na magia. Podemos dizer que a mente materialista e ateísta de Freud buscava na razão e na ciência a esperança de cura desses aspectos indesejados da mente humana. Contudo, de forma paradoxal, mesmo tendo essa visão oficial sobre a mente anímica e fenômenos anômalos e/ou paranormais, o próprio Freud nutria interesse particular ao nível ontológico desses aspectos, algo que lhe deixava propenso a crenças em fantasmas e na telepatia. Com isso, a busca pelos mistérios da existência dentro do que é entendido como “oculto” continuou permeando diversos psicanalistas ao longo do século XX e na atualidade. Freud, Ferenczi, Jung e muitos outros psicanalistas mantiveram acesa essa linha investigativa tentando ampliar sua visão ontológica da realidade para além da fenomenologia psicopatológica e de suas explicações psicologizantes (PIERRI, 2023).

E se de um lado temos as fantasias como fuga da realidade, de outro temos a chamada pulsão epistemofílica que é nossa motivação interna para aquisição de conhecimento. Pelo caminho “epistemofílico” é que se produziria a ciência enquanto resultado do entrecruzamento entre esse impulso e as fantasias que nos movem rumo ao desconhecido. Se de antemão não poderíamos estabelecer com plena convicção de que se trata a realidade e como ela é estruturada fica a dúvida e o campo aberto para a pesquisa de anomalias científicas que nos fazem repensar as construções que temos acerca do que é e do que não é real. Ou seja, as anomalias cientificas do ponto de vista psicanalítico nos permitem encarar uma falta de contornos claros entre fato e ficção ou entre fantasia e realidade (JONES, 1999).

Se fantasmas, alienígenas, criptídeos, poderes paranormais e vida após a morte existem então nos vemos em um mundo atravessado por regras e condições muito diferentes da aleatoriedade adaptativa dos animais tais como proposta pelo darwinismo. Do ponto de vista clínico é que esses questionamentos vão tomar força na medida em que muitos pacientes trazem experiências anômalas que não se encaixam em diagnósticos psicopatológicos. Desde quando me formei em psicologia recebi pacientes que relatavam contato direto com os mortos seja através de visitas de dormitório e/ou de incorporações dentro de um contexto umbandista. Pois diante desse cenário que começou a me perturbar eu não sentia que dispunha de muitas ferramentas. Me restava ouvir e levar para supervisões, já que na minha formação em psicologia esses conteúdos sobre espiritualidade, fé e experiências anômalas não foram contemplados. Posso dizer que meus supervisores ficaram bastante atrapalhados com os casos e a maior parte deles tentava encaixar as experiências anômalas em psicopatologia. Esse buraco na formação existe até hoje na maioria das faculdades de psicologia e nos institutos de formação em psicanálise (ROIZMAN, 2025).

Pois nessa minha atuação clínica é que me deparei com o tema do estranho em Freud que está intimamente ligado ao narcisismo. Ou seja, o ser humano tem tendência em aceitar o familiar e a recusar o infamiliar/estranho/anômalo, já que em função do desconhecimento essas questões seriam de grande ameaça ao eu/ego humano pois atreladas a perda de controle sobre uma determinada realidade. Essas ameaças são oriundas tanto de dentro como de fora do psiquismo e, por isso, seriam tanto obstáculos à travessia do estranho que nos habita (inconsciente recalcado) como ao estranho da realidade externa (anomalia cientifica/fenômenos paranormais), (CARDEÑA; LYNN; KRIPPNER, 2013).

Já o tratamento psicanalítico das experiências anômalas implicaria em suspender a busca por diagnósticos de modo acompanhar o paciente com respeito e empatia dentro de uma perspectiva relacional com o objetivo de atenuar os medos e permitir, dentro do possível, que o estranho se torne algo familiar. E na medida em que o estranho habita dentro e fora é que além do consultório eu também me decidi por fazer pesquisa de campo na área de fenômenos ufológicos (RABEYRON, 2020).

Sendo eu mesmo testemunha ocular de ovnis nutri fascínio por esse assunto desde criança. Certa vez quando tinha por volta de dez anos de idade vi uma nave triangular perto do aeroporto de Cumbica em São Paulo. Esse objeto escuro acompanhou o carro na rodovia por um tempo até ir ficando para trás. Estava à noite e eu pude vê-lo, pois, a iluminação da rodovia acabava se refletindo no objeto de modo a que pude enxergá-lo em detalhes. Era um cone preto com alguns entalhes desenhados com aproximadamente três a quatro metros de altura por dois a três metros de diâmetro na base. Eu fiquei paralisado sem entender o que era e não consegui relatar aos demais ocupantes do carro o que eu tinha visto.

Já muitos anos depois eu avistaria uma esfera metálica que mudava de cor no terraço do consultório em São Paulo. Eu subi no terraço com um paciente meu de dez anos de idade para mexermos com água e tinta em um local apropriado. Quando chegamos lá, logo vimos essa esfera do tamanho de uma bola de basquete que estava parada no vão livre entre o nosso prédio e o próximo. Pudemos vê-la em detalhes e eu ainda consegui interagir gritando e mexendo os braços. Ela respondeu mudando de cor e fazendo um zigue-zague no ar. Mas infelizmente o paciente entrou em angústia e eu tive de interromper a experiência. Ao final do atendimento, já de volta ao consultório ele contou para a mãe que por sua vez não acreditou que fosse um ovni. Diante desse fato eu achei melhor não insistir no assunto pois não havia espaço emocional e cognitivo para isso (ROIZMAN,2025).

Diante desses acontecimentos eu passei a desenvolver uma articulação entre psicanálise e experiências anômalas com entrevistas e pesquisas de campo enfatizando a área da ufologia. Me debrucei sobre a Serra da Beleza (RJ) e mais especialmente sobre região do PETAR (Parque estadual turístico do Alto Ribeira).  Nesses lugares fiz vigílias no mato durante as madrugadas e colhi relatos extraordinários envolvendo luzes com movimento inteligente, seres humanoides, curas anômalas, abduções e outras situações envolvendo experiências parapsicológicas (SILVA;  MARTINS, 2022).

Diante desse trabalho de campo pude ver que a psicanálise em relação com a ufologia e a parapsicologia/psicologia anomalística pode render bons frutos na busca pela verdade e no acolhimento de pessoas que muitas vezes compartilham fenômenos de grande ocorrência em certas localidades. Há uma espécie de cultura ufológica local com casuística própria de modo a que a dimensão antropológica dessas regiões está intimamente ligada às anomalias científicas.

Nesse sentido posso resumir que meu trabalho de consultório com pacientes, minhas entrevistas online e minhas pesquisas de campo renderam o seguinte:

  • Experiências anômalas são muito comuns e não devem ser alvo de diagnósticos, o que não quer dizer que não possam ter alguma relação com psicopatologias a depender do caso. Elas podem ser inteiramente singulares como também compartilhadas (principalmente as ufológicas, mas também as telepáticas e os fenômenos de poltergeist) (AUERBACH, 2004).
  • Seu aprendizado e sabedoria frente ao mistério é muito expressivo. Nos ensinam a produzir ciência, lidar com nossos medos e a fazer a travessia do estranho dentro e fora de nós.
  • Frequentemente nos inspiram a uma relação com o sagrado e o transcendente, já que nos fazem questionar o propósito e a origem da vida, bem como das relações humanas como o mundo e a natureza (TART, 2013).
  • Abrem as portas para repensarmos a realidade do ponto de vista ontológico na medida em que apontam para a existência de dimensões paralelas, imortalidade da consciência, aspectos não materialistas da vida, bem como para a vida inteligente fora da Terra e além (MOREIRA-ALMEIDA; COSTA; COELHO, 2022)..

Referencias

AUERBACH, L. Hauntings and poltergeists: a ghost hunther’s guide, Ronin publishing, California, 2004.

CARDEÑA, E. LYNN, S, J. KRIPPNER S. Variedades da experiência anômala: análise de evidências científicas, Atheneu, São Paulo, 2013.

JONES, E. A vida e a obra de Sigmund Freud: a maturidade (volume 2), Imago editora, Rio de Janeiro, 1999.

MOREIRA-ALMEIDA, A. COSTA M A, COELHO, H S. Ciência da vida após a morte, Springer, Belo Horizonte, 2022.

PIERRI, M. Ocultism and the origins of psychoanalysis: Freud, Ferenczi and the challenge of the thought transference, Routledge, London, 2023.

RABEYRON, T.  Clinique des expériences exceptionnelles, Dunod, Malakoff, 2020.

ROIZMAN, D. H. A psicanálise das experiências anômalas: desdobramentos do estranho, Zagodoni, São Paulo, 2025.

SILVA, F. E, MARTINS, L.B. Psicologia anomalística, explorando experiências humanas extraordinárias, Editora Intersaberes, 2022.

TART, C O fim do materialismo: como as evidências científicas dos fenômenos paranormais estão unindo ciência e espiritualidade, Cultrix, São Paulo, 2012.

WONDRACEK, K. H. K. O futuro e a ilusão: um embate com Freud entre psicanálise e religião, Vozes, Rio de Janeiro, 2003.

Psychoanalysis in the Face of Scientific Anomalies: What Does the Clinic Offer Us?

The mystery of existence and its end with death awaken an existential anguish that sometimes paralyzes us. According to Freud and several of his successors, interest in the paranormal is part of the childhood universe due to the psychic mind that experiences the universe as conscious and endowed with forces, purpose, and personality. In this sense, ghosts and beliefs in magical powers would be residues of childhood neurosis, never fully resolved in adults. God and religions would also be necessary elements for people to deal with their helplessness in the face of life’s randomness (WONDRACEK, 2003).

In this vein, psychoanalysis would emerge as a rational practice of explanation, aiming for a possible therapeutic liberation from the bonds of neurosis that lead us to fear life and belief in the supernatural and magic. We can say that Freud’s materialistic and atheistic mind sought in reason and science the hope of curing these unwanted aspects of the human mind. However, paradoxically, despite holding this official view of the psychic mind and anomalous and/or paranormal phenomena, Freud himself harbored a particular interest in the ontological level of these aspects, something that left him prone to beliefs in ghosts and telepathy. Thus, the search for the mysteries of existence within what is understood as “occult” continued to permeate various psychoanalysts throughout the 20th century and today. Freud, Ferenczi, Jung, and many other psychoanalysts kept this line of inquiry alive, attempting to expand their ontological view of reality beyond psychopathological phenomenology and its psychologizing explanations (PIERRI, 2023).

And if, on the one hand, we have fantasies as an escape from reality, on the other, we have the so-called epistemophilic drive, which is our internal motivation for acquiring knowledge. It is through the “epistemophilic” path that science would be produced, resulting from the intersection between this drive and the fantasies that move us toward the unknown. If we could not establish with full conviction beforehand what reality is and how it is structured, then doubt remains, and the field remains open for research into scientific anomalies that make us rethink our constructs about what is and what is not real. In other words, scientific anomalies, from a psychoanalytic perspective, allow us to confront a lack of clear boundaries between fact and fiction or between fantasy and reality (JONES, 1999).

If ghosts, aliens, cryptids, paranormal powers, and life after death exist, then we find ourselves in a world permeated by rules and conditions very different from the adaptive randomness of animals, as proposed by Darwinism. From a clinical perspective, these questions will gain traction as many patients present with anomalous experiences that don’t fit psychopathological diagnoses. Ever since I graduated in psychology, I’ve received patients who reported direct contact with the dead, whether through dormitory visits and/or incorporations within an Umbanda context. Faced with this scenario, which began to disturb me, I didn’t feel I had many tools. I was left to listen and take them to supervisions, since my psychology training didn’t cover this content on spirituality, faith, and anomalous experiences. I can say that my supervisors were quite overwhelmed by the cases, and most of them tried to frame the anomalous experiences as psychopathology. This gap in training still exists today in most psychology schools and psychoanalysis training institutes (ROIZMAN, 2025).

It was in my clinical work that I encountered the theme of the uncanny in Freud, which is closely linked to narcissism. That is, human beings tend to accept the familiar and reject the unfamiliar/strange/anomalous, since, due to ignorance, these issues pose a great threat to the human self/ego, linked to the loss of control over a given reality. These threats originate from both within and outside the psyche and, therefore, constitute obstacles to traversing the uncanny that inhabits us (the repressed unconscious) and the uncanny of external reality (scientific anomaly/paranormal phenomena) (CARDEÑA; LYNN; KRIPPNER, 2013.

The psychoanalytic treatment of anomalous experiences, on the other hand, would entail suspending the search for diagnoses in order to accompany the patient with respect and empathy within a relational perspective, aiming to alleviate fears and allow, as far as possible, the uncanny to become something familiar. And because the uncanny resides within and without, I also decided to conduct field research in the area of ​​UFO phenomena beyond the consulting room (RABEYRON, 2020).

As an eyewitness to UFOs myself, I’ve been fascinated by this subject since childhood. Once, when I was about ten years old, I saw a triangular craft near Cumbica Airport in São Paulo. This dark object followed the car on the highway for a while before fading away. It was nighttime, and I could see it because the highway lights reflected off the object, allowing me to see it in detail. It was a black cone with several notches, approximately three to four meters high and two to three meters in diameter at the base. I was paralyzed, unable to understand what it was and was unable to tell the other occupants of the car what I had seen.

Many years later, I would spot a color-changing metallic sphere on the terrace of my office in São Paulo. I went up to the terrace with a ten-year-old patient of mine to play with water and paint in a suitable place. When we got there, we immediately saw this basketball-sized sphere sitting in the open space between our building and the next. We could see it in detail, and I even managed to interact with it by shouting and waving my arms. It responded by changing color and zigzagging in the air. But unfortunately, the patient became distressed, and I had to interrupt the experiment. At the end of the session, back in the office, he told his mother, who in turn didn’t believe it was a UFO. Given this, I thought it best not to pursue the matter further, as there wasn’t enough emotional or cognitive space for it (ROIZMAN,2025).

In light of these events, I began to develop a connection between psychoanalysis and anomalous experiences through interviews and field research, emphasizing the field of ufology. I focused on Serra da Beleza (RJ) and, more specifically, the PETAR (Alto Ribeira State Tourist Park) region. In these places, I held early morning vigils in the woods and collected extraordinary accounts involving intelligently moving lights, humanoid beings, anomalous healings, abductions, and other situations involving parapsychological experiences (SILVA;  MARTINS, 2022).

Through this fieldwork, I realized that psychoanalysis, in conjunction with ufology and parapsychology/anomalistic psychology, can yield positive results in the search for truth and in welcoming people who often share phenomena that are common in certain locations. There is a kind of local UFO culture with its own case series, so the anthropological dimension of these regions is closely linked to scientific anomalies.

In this sense, I can summarize my work with patients, my online interviews, and my field research as follows:

1) Anomalous experiences are very common and should not be subject to diagnosis, which does not mean they cannot be related to psychopathologies depending on the case. They can be entirely unique or shared (especially UFO-related experiences, but also telepathic experiences and poltergeist phenomena) (AUERBACH, 2004).

2) Their learning and wisdom in the face of mystery are very expressive. They teach us how to produce science, deal with our fears, and navigate the strange within and outside ourselves.

3) They often inspire us to connect with the sacred and the transcendent, as they make us question the purpose and origin of life, as well as human relationships with the world and nature (TART, 2013).

4) They open the doors for us to rethink reality from an ontological point of view as they point to the existence of parallel dimensions, immortality of consciousness, non-materialistic aspects of life, as well as intelligent life outside of Earth and beyond (MOREIRA-ALMEIDA; COSTA; COELHO, 2022).

 

References:

AUERBACH, L. Hauntings and poltergeists: a ghost hunther’s guide, Ronin publishing, California, 2004.

CARDEÑA, E. LYNN, S, J. KRIPPNER S. Variedades da experiência anômala: análise de evidências científicas, Atheneu, São Paulo, 2013.

JONES, E. A vida e a obra de Sigmund Freud: a maturidade (volume 2), Imago editora, Rio de Janeiro, 1999.

MOREIRA-ALMEIDA, A. COSTA M A, COELHO, H S. Ciência da vida após a morte, Springer, Belo Horizonte, 2022.

PIERRI, M. Ocultism and the origins of psychoanalysis: Freud, Ferenczi and the challenge of the thought transference, Routledge, London, 2023.

RABEYRON, T.  Clinique des expériences exceptionnelles, Dunod, Malakoff, 2020.

ROIZMAN, D. H. A psicanálise das experiências anômalas: desdobramentos do estranho, Zagodoni, São Paulo, 2025.

SILVA, F. E, MARTINS, L.B. Psicologia anomalística, explorando experiências humanas extraordinárias, Editora Intersaberes, 2022.

TART, C O fim do materialismo: como as evidências científicas dos fenômenos paranormais estão unindo ciência e espiritualidade, Cultrix, São Paulo, 2012.

WONDRACEK, K. H. K. O futuro e a ilusão: um embate com Freud entre psicanálise e religião, Vozes, Rio de Janeiro, 2003.