
Experiências religiosas, mediúnicas, anômalas e não-ordinárias trazidas pelos pacientes para a psicoterapia
- 20 maio 2025
- 14:00
- Autor: Edson Sigueyoshi Hamazaki
- Programa de Pesquisa em Experiências Não-Ordinárias e Estados Alterados de Consciência do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (PROEXP - IPq-HCFMUSP)
Parcela substancial da população brasileira, 92%, segundo o censo demográfico realizado em 2010, se diz filiada a alguma religião (IBGE, 2010). Isto demonstra que a crença religiosa pode ser muito importante, quem sabe determinante, na maneira como o indivíduo vê, entende e se coloca no mundo, influenciando suas percepções e impactando a sua saúde mental.
Considerando que estudos realizados indicam alta prevalência de experiências religiosas, mediúnicas, anômalas ou não-ordinárias na população em geral, variando de 85% a 100% dos participantes dizendo ter tido pelo menos uma experiência desse tipo durante a vida (Monteiro de Barros et al., 2022; Reichow, 2017; Torres, 2016), parece natural e esperado que essas experiências sejam trazidas para a psicoterapia.
Psicoterapia e religião, religiosidade e espiritualidade
Na psicoterapia paciente e terapeuta se reúnem num encontro que objetiva compreender como o paciente percebe, sente, se posiciona e se comporta em relação aos fatos cotidianos da vida, num diálogo entre interlocutores comprometidos em identificar quais são as mudanças necessárias, os ajustamentos, num processo de reeducação que leve ao autoconhecimento e autoestima, auxiliando o paciente a se desvencilhar do sofrimento e angústias que o fizeram buscar a ajuda terapêutica (Pinto, 2013).
A religião pode ser entendida como um sistema fornecedor de conteúdo simbólico, doutrinário, ritual, de crenças, da moral. A religiosidade seria como o indivíduo se apropria desse sistema, adaptando-o a partir das suas experiências pessoais, desenvolvendo o seu comprometimento religioso. Já a espiritualidade pode se constituir num sistema independente, inclusive desvinculado da ideia de Deus e de concepções religiosas, envolvendo liberdade, criatividade e autenticidade na busca pessoal por sentido para a vida (Franco, 2017).
Fatores culturais interferem na aceitação do paciente e na realização da psicoterapia, lembrando que existe uma longa história de conflito entre religião e cuidados em saúde mental. Atitudes preconceituosas em relação a religião que muitas vezes cegam clínicos para os possíveis benefícios da abordagem e do uso de recursos relativos à religiosidade/espiritualidade do paciente no processo psicoterapêutico. Muitos pacientes religiosos deprimidos evitam a psicoterapia secular por considerá-la antipática às suas crenças religiosas ou por sentirem que a doença mental é vergonhosa e que procurar por psicoterapia significa desvalorizar a sua fé (Koenig, 2012).
Experiências religiosas, espirituais e anômalas trazidas por pacientes para a psicoterapia: Relatos dados por psicólogos
Essa pesquisa foi realizada para o desenvolvimento da tese de doutorado deste pesquisador, tendo como objetivo aferir a ocorrência, identificar e caracterizar as principais experiências religiosas, espirituais, mediúnicas e anômalas, trazidas pelos pacientes ou vivenciadas por eles e/ou pelos psicólogos durante o processo psicoterapêutico, além do manejo realizado por esses profissionais para lidar com essas experiências. Essa aferição foi feita através de relatos dados pelos psicólogos ao responder um questionário on-line, no período de novembro de 2023 a fevereiro de 2024. Além disso, também responderam questões que propiciaram um levantamento do perfil sociodemográfico dos psicólogos respondentes. Participaram 206 psicólogos de todos os estados brasileiros mais o Distrito Federal. Foram dados 299 relatos e descritos 263 manejos realizados.
Todos os relatos de experiências trazidas ou vivenciadas pelos pacientes durante a psicoterapia e dados pelos psicólogos que participaram da pesquisa, foram submetidos a análise de conteúdo de acordo com a metodologia desenvolvida por Laurence Bardin (Bardin, 2016). De acordo com esta metodologia, para o desenvolvimento deste trabalho, as diversas experiências relatadas foram categorizadas como: Experiências religiosas, envolvendo a presença, intervenção, percepção e revelação da divindade, além docoping negativo; Experiências mediúnicas, envolvendo sentir, ver, ouvir, perceber pensamentos, efeitos físicos, transe mediúnico ou transe de possessão atribuídos a um falecido ou entidade espiritual; Experiências anômalas, envolvendo experiências fora do corpo, de quase morte, sonhos lúcidos, curas anômalas e experiências místicas; Experiências PSI, envolvendo telepatia, clarividência, pré-cognição, sonhos premonitórios, memórias de vidas passadas e sincronicidade (Unger, 1976; Maraldi & Krippner, 2019; Moreira-Almeida, 2004; Cardeña, Lynn, Krippner, 2013).
Os resultados, ainda por serem submetidos a revistas internacionais, indicam que essas experiências são trazidas por uma parcela significativa de pacientes. Dos profissionais participantes, 161 (78,2%) psicólogos trouxeram 277 relatos de experiências. Destes, 198 (71,5%) relatos de experiências vivenciadas pelos pacientes e trazidas para a psicoterapia, 40 (14,5%) relatos de experiências vivenciadas pelos pacientes durante a psicoterapia no setting terapêutico e 39 (14%) relatos de experiências vivenciadas pelos psicólogos durante a psicoterapia no setting terapêutico. Além destes, também houve 22 relatos que não envolveram experiências, mas conflitos vivenciados pelos pacientes e correlacionados à religiosidade/espiritualidade pelos profissionais.
Com relação ao tipo de experiência, de acordo com a categorização adotada, obtivemos 44 (15,9%) experiências religiosas, 146 (52,7%) experiências mediúnicas, 49 (17,7%) experiências anômalas e 38 (13,7%) experiencias PSI.
As análises de conteúdo dos relatos das experiências e dos manejos realizados pelos profissionais psicólogos, proporcionou um panorama bastante abrangente e uma rica categorização das experiências vivenciadas pelos pacientes, sejam elas trazidas para a psicoterapia ou vivenciadas no setting terapêutico durante o processo psicoterápico. Trouxe informações relevantes sobre como essas experiências podem influenciar a saúde mental dos pacientes. Essas experiências são bastante diversas, sendo interpretadas de formas diferentes dependendo do contexto cultural, religioso e das crenças individuais, podendo gerar conforto e segurança ou desencadear estresse, angústia e ansiedade. A análise dos relatos trouxe questões éticas importantes sobre o tratamento que é dado pelos profissionais a estas experiências na psicoterapia, evidenciando uma linha bastante tênue entre apoio e, descaso ou manipulação.
Conclusões
Os profissionais devem ter consciência das próprias limitações ao lidar com estes temas e também das suas crenças pessoais, de forma que possam proporcionar um espaço seguro para seus pacientes trazerem suas experiências, sem risco e/ou temor de sofrer preconceitos ou julgamentos, realizando seu trabalho clínico com condutas baseadas em evidências científicas, através do desenvolvimento de habilidades e competências específicas necessárias para um manejo adequado. Além disso, também ficou evidente que a Psicologia é uma ciência e profissão em constante movimento e que as deficiências existentes na formação dos profissionais, no que diz respeito a esses temas precisam ser urgentemente corrigidas.
Referências
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016.
CARDEÑA, Etzel; LYNN, Steven Jay; KRIPPNER, Stanley (Orgs.). Variedades da Experiência Anômala: Análise de evidências científicas. São Paulo: Atheneu, 2013.
FRANCO, Clarissa de. Espiritualidades seculares, ateísmos e equívocos sobre o Estado laico. Revista Senso, n. 3, Belo Horizonte, ago/set. 2017.
IBGE [INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA]. Censo demográfico 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2010. Disponível em
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/94/cd_2010_religiao_deficiencia.pdf
KOENIG, Harold George. Religious versus Conventional Psychotherapy for Major Depression in Patients with Chronic Medical Illness: Rationale, Methods, and Preliminary Results. Depression Research and Treatment, p. 1-11, 2012.
MARALDI, Everton de Oliveira; KRIPPNER, Stanley. Cross-cultural research on anomalous experiences: Theoretical issues and methodological challenges. Psychology of Consciousness: Theory, Research, and Practice, v. 6(3), p. 306-319, 2019.
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MONTEIRO DE BARROS, Maria Cristina; LEÃO, Frederico Camelo; VALLADA FILHO, Homero; PERES, Mario Fernando Prieto; LUCCHETTI, Giancarlo; MOREIRA-ALMEIDA, Alexander. Prevalence of spiritual and religious experiences in the general population: A brazilian nationwide study. Transcultural Psychiatry. p. 1-15, 2022.
https://doi.org/10.1177/13634615221088701
MOREIRA-ALMEIDA, Alexander. Fenomenologia das experiências mediúnicas, perfil e psicopatologia de médiuns espíritas. 205 f. Tese (Doutorado em Ciências) – Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004.
PINTO, Ênio Brito. Ciência da Religião aplicada à psicoterapia. In PASSOS, João Décio; USARSKI, Frank. (Orgs.). Compêndio de Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas-Paulus, 2013, p.677-689.
REICHOW, Jeverson Rogério Costa. Estudo de experiências anômalas em médiuns e não médiuns: Prevalência, relevância, diagnóstico diferencial de transtornos mentais e relação com qualidade de vida. 2017. 567 f. Tese (Doutorado em Psicologia Social) Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.
TORRES, Camila Mendonça. Religiosidade e experiências anômalas no protestantismo brasileiro. 2016. 167 f. Tese (Doutorado em Psicologia) Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.
Religious, mediumistic, anomalous and non-ordinary experiences brought by patients to psychotherapy.
A substantial portion of the Brazilian population—92%, according to the 2010 demographic census—identifies with a religion (IBGE, 2010). This demonstrates that religious belief may be highly important, perhaps even decisive, in shaping how individuals see, understand, and position themselves in the world, influencing their perceptions and impacting their mental health.
Considering that studies have shown a high prevalence of religious, mediumistic, anomalous, or non-ordinary experiences in the general population—ranging from 85% to 100% of participants reporting having had at least one such experience in their lifetime (Monteiro de Barros et al., 2022; Reichow, 2017; Torres, 2016)—it seems both natural and expected that these experiences would be brought into psychotherapy.
Psychotherapy and Religion, Religiosity, and Spirituality
In psychotherapy, the patient and therapist meet in a meeting that aims to understand how the patient perceives, feels, positions themselves, and behaves in relation to the daily facts of life, in a dialogue between interlocutors committed to identifying the necessary changes and adjustments, in a process of re-education that leads to self-knowledge and self-esteem, helping the patient to free himself from the suffering and anguish that made him seek therapeutic help (Pinto, 2013).
Religion can be understood as a system that provides symbolic, doctrinal, ritual, belief, and moral content. Religiosity would be how the individual appropriates this system, adapting it based on his personal experiences, developing his religious commitment. Spirituality, on the other hand, can constitute an independent system, even detached from the idea of God and religious concepts, involving freedom, creativity, and authenticity in the personal search for meaning in life (Franco, 2017).
Cultural factors interfere with patient acceptance and the implementation of psychotherapy, remembering that there is a long history of conflict between religion and mental health care. Prejudiced attitudes towards religion often blind clinicians to the possible benefits of the integration and use of resources related to the patient’s religiosity and spirituality in the psychotherapeutic process. Many religious depressed patients avoid secular psychotherapy because they consider it unsympathetic to their religious beliefs or because they feel that mental illness is shameful and that seeking psychotherapy means devaluing their faith (Koenig, 2012).
Religious, Spiritual, and Anomalous Experiences Brought by Patients to Psychotherapy: Reports from Psychologists
This research was carried out for the development of this researcher’s doctoral thesis, with the objective of assessing the occurrence, identifying and characterizing the main religious, spiritual, mediumistic and anomalous experiences, brought by patients or experienced by them and/or psychologists during the psychotherapeutic process, in addition to the management carried out by these professionals to deal with these experiences. This assessment was made through reports given by psychologists when answering an online questionnaire between November 2023 and February 2024. In addition, they also answered questions that provided a survey of the sociodemographic profile of the responding psychologists. A total of 206 psychologists from all Brazilian states plus the Federal District participated. 299 reports were given and 263 management procedures performed were described.
All reports of experiences brought or experienced by patients during psychotherapy and given by psychologists who participated in the research were subjected to content analysis according to the methodology developed by Laurence Bardin (Bardin, 2016). According to this methodology, for the development of this work, the various experiences reported were categorized as: Religious experiences, involving the presence, intervention, perception and revelation of divinity, in addition to negative coping; Mediumistic experiences, involving feeling, seeing, hearing, perceiving thoughts, physical effects, mediumistic trance or possession trance attributed to a deceased person or spiritual entity; Anomalous experiences, involving out-of-body experiences, near-death experiences, lucid dreams, anomalous healings and mystical experiences; PSI experiences, involving telepathy, clairvoyance, precognition, premonitory dreams, memories of past lives and synchronicity (Unger, 1976; Maraldi & Krippner, 2019; Moreira-Almeida, 2004; Cardeña, Lynn, Krippner, 2013).
The results, yet to be submitted to international journals, indicate that these experiences are brought by a significant portion of patients. Of the participating professionals, 161 (78.2%) psychologists brought 277 reports of experiences. Of these, 198 (71.5%) reports of experiences experienced by patients and brought to psychotherapy, 40 (14.5%) reports of experiences experienced by patients during psychotherapy in the therapeutic setting and 39 (14%) reports of experiences experienced by psychologists during psychotherapy in the therapeutic setting. In addition to these, there were also 22 reports that did not involve experiences, but conflicts experienced by patients and correlated with religiosity/spirituality by professionals.
Regarding the type of experience, according to the categorization adopted, we obtained 44 (15.9%) religious experiences, 146 (52.7%) mediumistic experiences, 49 (17.7%) anomalous experiences and 38 (13.7%) PSI experiences.
The content analysis of the reports of experiences and management carried out by professional psychologists provided a very comprehensive overview and a rich categorization of the experiences experienced by patients, whether they were brought to psychotherapy or experienced in the therapeutic setting during the psychotherapeutic process. It brought relevant information about how these experiences can influence the mental health of patients. These experiences are quite diverse, being interpreted in different ways depending on the cultural and religious context and individual beliefs, and can generate comfort and security or trigger stress, anguish and anxiety. The analysis of the reports raised important ethical questions about the treatment given by professionals to these experiences in psychotherapy, highlighting a very fine line between support and, neglect or manipulation.
Conclusions
Professionals must be aware of their own limitations when dealing with these issues and also of their personal beliefs, so that they can provide a safe space for their patients to share their experiences, without the risk or fear of prejudice or judgment, carrying out their clinical work with conduct based on scientific evidence, through the development of specific skills and competencies necessary for adequate management. In addition, it also became clear that Psychology is a science and profession in constant evolution and that the existing deficiencies in the training of professionals, with regard to these topics, must be urgently addressed.
References
BARDIN, Laurence. Content analysis. São Paulo: Edições 70, 2016.
CARDEÑA, Etzel; LYNN, Steven Jay; KRIPPNER, Stanley (Orgs.). Varieties of Anomalous Experience: Analysis of scientific evidence. São Paulo: Atheneu, 2013.
FRANCO, Clarissa de. Secular spiritualities, atheisms and misconceptions about the secular state. Senso Magazine, n. 3, Belo Horizonte, Aug/Sept. 2017.
IBGE [BRAZILIAN INSTITUTE OF GEOGRAPHY AND STATISTICS].
Demographic Census 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2010. Available at https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/94/cd_2010_religiao_defi
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KOENIG, Harold George. Religious versus Conventional Psychotherapy for Major Depression in Patients with Chronic Medical Illness: Rationale, Methods, and Preliminary Results. Depression Research and Treatment, p. 1-11, 2012.
MARALDI, Everton de Oliveira; KRIPPNER, Stanley. Cross-cultural research on anomalous experiences: Theoretical issues and methodological challenges. Psychology of Consciousness: Theory, Research, and Practice, v. 6(3), p. 306-319, 2019.
https://doi.org/10.1037/cns0000188
MONTEIRO DE BARROS, Maria Cristina; LEÃO, Frederico Camelo; VALLADA FILHO, Homero; PERES, Mario Fernando Prieto; LUCCHETTI, Giancarlo; MOREIRA-ALMEIDA, Alexander. Prevalence of spiritual and religious experiences in the general population: A brazilian nationwide study. Transcultural Psychiatry. p. 1- 15, 2022.
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REICHOW, Jeverson Rogério Costa. Study of anomalous experiences in mediums and non-mediums: Prevalence, relevance, differential diagnosis of mental disorders and relationship with quality of life. 2017. 567 p. Thesis (PhD in Social Psychology) Graduate Program in Social Psychology of the Institute of Psychology of the University of São Paulo, São Paulo, 2017.
TORRES, Camila Mendonça. Religiosity and anomalous experiences in Brazilian Protestantism. 2016. 167 p. Thesis (PhD in Psychology) Graduate Program in Social Psychology of the Institute of Psychology of the University of São Paulo, São Paulo, 2016.