
Fé e Resiliência em Tempos Turbulentos: O Papel das Experiências Religiosas no Bem-Estar e no Enfrentamento de Crises
- 22 julho 2025
- 14:00
- Autora: Silvana Paula da Silva Siqueira
- Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, Pontíficia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) PROEXP – Programa de Pesquisa em Experiências Não-Ordinárias e Estados Alterados de Consciência, Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP (IPq-HCFMUSP)
Observa-se que a história da humanidade é pontuada por desafios que testam nossa capacidade de adaptação e resiliência. Sejam pandemias devastadoras ou cenários geopolíticos incertos que nos remetem à beira de um conflito, como o que se desenha em nosso horizonte atual, a busca por sentido e suporte se intensifica. Em meio a essas turbulências, a religiosidade e a espiritualidade (R/E) emergem como forças poderosas no enfrentamento individual e coletivo, oferecendo não apenas conforto, mas também estratégias ativas para lidar com o desconhecido.
A necessidade de compreender a importância da fé e da espiritualidade no enfrentamento de crises é ainda mais acentuada no Brasil, dada a dinâmica demográfica. Dados recentes do Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam um crescimento notável da população evangélica no país. O percentual de evangélicos alcançou 26,9% da população, um aumento expressivo em comparação aos 21,6% registrados em 2010. Este crescimento é ainda mais pronunciado entre os mais jovens, com 31,6% dos brasileiros de 10 a 14 anos e 28,9% dos adolescentes de 15 a 19 anos se declarando evangélicos. Regionalmente, o Norte do Brasil lidera, com 36,8% da população evangélica, e a diversidade racial e étnica dentro deste grupo é notável, com 49,1% pardos, 38% brancos, e 12% pretos.
Este cenário demográfico não apenas justifica, mas exige uma análise aprofundada de como este segmento da população brasileira e, por extensão, as comunidades de fé em geral, encontram e aplicam recursos espirituais para navegar por crises. Minhas pesquisas, tanto no mestrado quanto no doutorado, dedicam-se a desvendar essa intrincada relação, investigando como a atribuição de causalidade e o coping religioso/espiritual impactam o enfrentamento de eventos estressantes e, de forma mais ampla, influenciam o bem-estar.
O Que Entendemos por Religiosidade e Espiritualidade?
Para adentrar na complexidade do tema, é essencial clarear os conceitos de religiosidade e espiritualidade. Conforme Koenig (2012), a religião pode ser entendida como um sistema organizado de crenças, práticas, rituais e símbolos que conecta os indivíduos a uma dimensão transcendente. Ela oferece uma estrutura doutrinária, um senso de comunidade e um conjunto de princípios que orientam a vida, desde o cotidiano até a compreensão da finitude.
Já a espiritualidade, como pontua Maraldi (2020), é uma busca mais íntima e pessoal por significado, uma conexão com algo maior que o eu, que não necessariamente se atrela a uma instituição religiosa. Práticas e as crenças religiosas/espirituais podem ou não desenvolver no religioso a vontade de buscar a ‘espiritualidade’. De igual maneira, pessoas espiritualizadas podem ou não se envolver em assuntos religiosos para compreender o sentido que atribuem à espiritualidade em sua experiência de vida (Siqueira, 2021). Essa compreensão é vital: em meio a crises, seja uma pandemia ou a iminência de conflitos globais, a espiritualidade oferece um caminho no descortinar de sentidos para a existência humana, propiciando gatilhos para a resiliência, sobretudo nos momentos de dor, nas travessias dos vales sombrios da doença e da morte.
Como a Fé Contribui para o Bem-Estar e a Qualidade de Vida?
A relação entre religiosidade, espiritualidade e saúde é um campo de estudo cada vez mais robusto. Em momentos de grande sofrimento e incerteza, indivíduos frequentemente buscam na fé um alívio para o estresse, um senso de propósito e uma forma de manter a esperança. A literatura destaca uma associação positiva e significativa entre a religiosidade/espiritualidade e o bem-estar físico e mental, contribuindo para uma maior resiliência e capacidade de enfrentar adversidades (Koenig, VanderWeele & Peteet, 2024). A fé pode, por exemplo, mitigar o impacto psicossocial de eventos traumáticos, como o luto e a doença, promovendo comportamentos mais adaptativos e uma visão mais otimista do futuro.
O Que é o Coping Religioso/Espiritual (CRE) e Como Ele Atua em Crises?
No âmbito da psicologia, o termo coping descreve as estratégias utilizadas para lidar com o estresse. O Coping Religioso/Espiritual (CRE), conceito central para Kenneth Pargament (1997), refere-se à mobilização da religião e da fé para enfrentar situações difíceis. Pargament, cuja própria experiência de vida o levou a aprofundar-se no tema, identificou que o CRE oferece recursos internos (como a busca por significado e conforto) e externos (como o apoio da comunidade) para lidar com adversidades de todas as ordens.
O CRE pode se manifestar de forma Positiva (CREP) ou Negativa (CREN). O CREP envolve estratégias construtivas, como buscar apoio espiritual, colaborar com o divino na resolução de problemas e ressignificar as adversidades de maneira benevolente. Essas abordagens contribuem para o bem-estar e a resiliência. Em contraste, o CREN, caracterizado por questionamentos e conflitos com o sagrado ou a comunidade, pode intensificar o sofrimento e gerar resultados desfavoráveis (Siqueira, 2021).
Resultados da Minha Pesquisa de Mestrado: Coping Religioso na Pandemia de COVID-19
Minha dissertação de mestrado foi realizada com o objetivo de investigar como membros de uma comunidade evangélica lidaram com a pandemia de COVID-19. Focada na Igreja Evangélica Nasci pra Deus (Guarulhos, SP), a pesquisa ilustrou vividamente como a atribuição de causalidade e o coping religioso/espiritual se manifestaram. As entrevistas revelaram diversas formas de atribuição de causalidade à pandemia. Embora as explicações variassem — de “algo que simplesmente aconteceu” a um “castigo divino” ou uma “proposta divina” (Siqueira, 2021, p. 100-101) — a presença do divino como parte da interpretação foi constante. Essa atribuição, como defende Kelley (1980), influencia diretamente a forma como se desenvolvem as estratégias de enfrentamento e, em muitos casos, propicia um senso de controle e diminui os impactos negativos, conforme observado por Heider (1970).
A pesquisa também confirmou a predominância do Coping Religioso/Espiritual Positivo (CREP). O pastor do contexto analisado, por exemplo, demonstrou um estilo colaborativo, enfatizando a obediência às medidas sanitárias enquanto mantinha a fé na soberania divina. Casos como o de uma das entrevistadas, que perdeu o marido para a COVID-19, ressaltam a força do CREP: mesmo em meio ao luto profundo, sua fé e a súplica a Deus permitiram-lhe encontrar consolo e seguir em frente (Siqueira, 2021).
Além das estratégias individuais, a Igreja evangélica analisada demonstrou ser um pilar de apoio social e emocional. Ela intensificou suas ações durante a pandemia, com a distribuição de alimentos e roupas (cerca de 30 toneladas para 1000 famílias), campanhas de doação de sangue (226 bolsas), palestras e aconselhamentos. Essa mobilização, que o Pastor Nei descreveu como reveladora das “necessidades emocionais e espirituais” das pessoas, evidenciou a capacidade das instituições religiosas de oferecer suporte vital em tempos de crise.
Meu Projeto de Doutorado: Experiências Religiosas e Qualidade de Vida de Evangélicos
A partir das descobertas do mestrado, meu projeto de tese de doutorado aprofunda-se na fenomenologia das experiências religiosas em contextos pentecostais e neopentecostais brasileiros. O foco é compreender como as vivências subjetivas — como a glossolalia (falar em línguas), profecias, curas divinas e estados alterados de consciência — são percebidas, interpretadas e significadas pelos fiéis. Essas manifestações são consideradas sinais tangíveis da ação do Espírito Santo e, ao serem analisadas pela perspectiva do próprio participante (“o nativo”), revelam categorias de significação que transcendem explicações puramente patológicas ou sociológicas.
A tese, ainda em elaboração, propõe-se a mapear como essas experiências impactam diretamente a qualidade de vida dos evangélicos, utilizando uma abordagem fenomenológica que respeita a complexidade simbólica e afetiva dessas vivências. A expectativa é identificar padrões que demonstrem como essas experiências espirituais contribuem para o bem-estar e a resiliência em face dos desafios da vida.
Conclusões: Lições para um Mundo em Transformação
Verificou-se que as crises globais que enfrentamos, desde pandemias sanitárias a tensões geopolíticas, reforçam a importância de estudar a dimensão religiosa e espiritual do ser humano. Minhas pesquisas, ao analisar o coping religioso em tempos de COVID-19 e as experiências espirituais que impactam a qualidade de vida dos evangélicos, revelam que a fé não é apenas um refúgio, mas uma fonte ativa de resiliência, solidariedade e sentido.
O expressivo crescimento da população evangélica no Brasil, evidenciado pelos dados do IBGE, sublinha a urgência de aprofundar o conhecimento sobre esse grupo, compreendendo suas formas de enfrentamento e o impacto de suas vivências espirituais, para além da importância social ou política que a ascensão dos evangélicos têm suscitado entre cientistas sociais. As lições aprendidas em um contexto de pandemia são extrapoláveis para o enfrentamento de outras incertezas, incluindo os desafios de cenários nacionais e de crises globais. Faz-se importante ressaltar a necessidade de constante atualização sobre esse assunto, por isso, indica-se que novos estudos envolvendo as vivências religiosas e a qualidade de vida sejam realizados, assim como capacitações que contribuam para o desenvolvimento de compreensão profissional no manejo das R/E.
Faith and Resilience in Turbulent Times: The Role of Religious Experiences in Well-being and Coping during Crisis Situations
Human history is punctuated by challenges that test our capacity for adaptation and resilience. During devastating pandemics or uncertain geopolitical scenarios that bring us to the brink of conflict, as is currently unfolding, the search for meaning and support intensifies. Amidst these turbulences, religiosity and spirituality (R/S) emerge as powerful forces, providing individual and collective coping and offering not only comfort but also active strategies to deal with the unknown.
The need to understand the importance of faith and spirituality in coping with crises is even more accentuated in Brazil, given the demographic dynamics. Recent data from the 2022 Census by the Brazilian Institute of Geography and Statistics (IBGE) reveal a remarkable growth in the evangelical population in the country. The percentage of evangelicals reached 26.9% of the population, a significant increase compared to 21.6% recorded in 2010. This growth is even more pronounced among younger individuals, with 31.6% of Brazilians aged 10 to 14 and 28.9% of adolescents aged 15 to 19 declaring themselves evangelical. Regionally, the North of Brazil leads, with 36.8% of the population declaring themselves evangelical. The racial and ethnic diversity within this group is notable, with 49.1% being Pardo (brown), 38% White, and 12% Black.
This demographic scenario not only justifies but demands an in-depth analysis of how this segment of the Brazilian population – and, by extension, faith communities in general – finds and applies spiritual resources to navigate crises. My research, both in my master’s and doctoral studies, aims to unravel this intricate relationship, investigating how attribution of causality and religious/spiritual coping impact the handling of stressful events and, more broadly, influence well-being.
What Do We Understand by Religiosity and Spirituality?
To delve into the complexity of this topic, it is essential to clarify the concepts of religiosity and spirituality. According to Koenig (2012), religion can be understood as an organized system of beliefs, practices, rituals, and symbols that connect individuals to a transcendent dimension. It offers a doctrinal structure, a sense of community, and a set of principles that guide individuals through life, from daily routines to the understanding of finitude.
Spirituality, on the other hand, as Maraldi (2020) points out, is a more intimate and personal search for meaning, a connection with something greater than oneself, which does not necessarily depend on religious affiliation. Religious/spiritual practices and beliefs may or may not develop in the religious person the will to seek ‘spirituality.’ Similarly, spiritual individuals may or may not engage in religious matters to understand the meaning they attribute to spirituality in their lives (Siqueira, 2021). This understanding is vital: amidst crises, be it a pandemic or imminent global conflicts, spirituality offers a “path in unraveling meanings for human existence, providing triggers for resilience, especially in moments of pain, in crossing the shadowy valleys of illness and death.
How Does Faith Contribute to Well-being and Quality of Life?
The relationship between religiosity, spirituality, and health is an increasingly robust field of study. In moments of great suffering and uncertainty, individuals often seek in faith relief from stress, a sense of purpose, and a way to maintain hope. The literature highlights a positive and significant association between religiosity/spirituality and physical and mental well-being, contributing to greater resilience and ability to face adversities (Koenig, VanderWeele & Peteet, 2024). For example, faith can help mitigate the psychosocial impact of traumatic events, such as grief and illness, promoting more adaptive behaviors and a more optimistic outlook on the future.
What is Religious/Spiritual Coping (R/SC) and How Does It Act in Crisis Situations?
In psychology, the term coping describes the strategies used to deal with stress. Religious/Spiritual Coping (R/SC), a central concept proposed by Kenneth Pargament (1997), refers to the mobilization of religion and faith to deal with a difficult situation that causes any type of discomfort/stress. Pargament, whose own life experience led him to delve into the topic, identified that R/SC offers internal resources (such as the search for meaning and comfort) and external ones (such as community support) to deal with adversities of all kinds.
R/SC can manifest in either a Positive (PR/SC) or Negative (NR/SC) form. PR/SC involves constructive strategies, such as seeking spiritual support, collaborating with the divine in problem-solving, and reframing adversities in a benevolent manner. These approaches contribute to well-being and resilience. In contrast, NR/SC, characterized by questioning and conflicts with the sacred or the community, can intensify suffering and lead to unfavorable outcomes (Siqueira, 2021).
Findings from My Master’s Research: Religious Coping in the COVID-19 Pandemic
My master’s dissertation aimed to investigate how members of an evangelical community coped with the COVID-19 pandemic. Focused on the Igreja Evangélica Nasci pra Deus (Born for God Evangelical Church) in Guarulhos, São Paulo, the research vividly illustrates how causality attribution and religious/spiritual coping manifested. Interviews revealed various forms of causality attribution to the pandemic. Although explanations varied – from “something that simply happened” to a “divine punishment” or a “divine proposal” (Siqueira, 2021, p. 100-101) – the presence of the divine as part of the interpretation was constant. This attribution, as Kelley (1980) argues, directly influences how coping strategies develop and, in many cases, provides a sense of control and reduces negative impacts, as observed by Heider (1970).
The research also confirmed the predominance of Positive Religious/Spiritual Coping (PR/SC). The pastor in the analyzed context, for example, demonstrated a collaborative style, emphasizing obedience to health measures while maintaining faith in divine sovereignty. Cases like that of one of the interviewees, who lost her husband to COVID-19, highlight the strength of PR/SC: even amidst deep grief, her faith and supplication to God allowed her to find solace and move forward (Siqueira, 2021).
In addition to individual strategies, the evangelical church analyzed proved to be a pillar of social and emotional support. It intensified its actions during the pandemic, with the distribution of food and clothing (about 30 tons for 1000 families), blood donation campaigns (226 bags), lectures, and counseling. This mobilization, which Pastor Nei described as revealing people’s “emotional and spiritual needs”, demonstrated the capacity of religious institutions to offer vital support in times of crisis.
My Doctoral Project: Religious Experiences and Quality of Life Among Evangelicals
Building on the master’s findings, my doctoral thesis project delves into the phenomenology of religious experiences in Brazilian Pentecostal and Neo-Pentecostal contexts. The focus is on understanding how subjective experiences – such as glossolalia (speaking in tongues), prophecies, divine healings, and altered states of consciousness – are perceived, interpreted, and provide meaning to the adherents’ lives. These manifestations are considered tangible signs of the Holy Spirit’s action and, when analyzed from the perspective of the participant (“the native”), reveal categories of meaning that transcend purely pathological or sociological explanations.
The thesis aims to map how these experiences directly impact the quality of life of evangelicals, using a phenomenological approach that respects the symbolic and affective complexity of these experiences. The expectation is to identify patterns that demonstrate how these spiritual experiences contribute to well-being and resilience in the face of life’s challenges.
Conclusions: Lessons for a World in Transformation
It has been observed that the global crises we face, from health pandemics to geopolitical tensions, reinforce the importance of studying the religious and spiritual dimension of human beings. My research, by analyzing religious coping during COVID-19 and the spiritual experiences that impact the quality of life of evangelicals, reveals that faith is not merely a refuge but an active source of resilience, solidarity, and meaning.
The expressive growth of the evangelical population in Brazil, evidenced by IBGE data, underscores the urgency of deepening our knowledge about this group, understanding their coping mechanisms and the impact of their spiritual experiences. The lessons learned in a pandemic context can be generalized to other uncertainties, including the challenges of global crisis scenarios. It is important to emphasize the need for constant updating on this topic; therefore, further studies involving religious experiences and quality of life are indicated, as well as training that contributes to the development of professional understanding in the management of R/S.
Referências
Heider, F. (1970). Psicologia das relações interpessoais. São Paulo: Editora Pioneira.
Maraldi, E. O. (2020). Princípios de Psicologia da Religião. Osasco: Ramalho Edições Acadêmicas.
Kelley, H.H. (1973). The process of causal attribution. American Psychologist, 28, 107-128.
Koenig, H. G. (2012). Medicina, Religião e Saúde: o Encontro da Ciência e da Espiritualidade. Porto Alegre: L&PM.
Koenig, H. G., VanderWeele, T. J., & Peteet, J. R. (2024). Handbook of Religion and Health (3rd ed.). Oxford University Press.
Pargament, K. (1997). The psychology of religion and coping: theory, research, practice. New York: Guilford Press.
Siqueira, S. P. S. (2021). Atribuição de causalidade e coping religioso/espiritual adotados pela Igreja Evangélica Nasci pra Deus frente à pandemia da covid-19 [Dissertação de mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo]. Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciência da Religião da PUC-SP.